Capela do Senhor da Pedra (Vila Nova de Gaia) (**)

Capela do Senhor da Pedra (Vila Nova de Gaia) (**)

No litoral de Vila Nova de Gaia, ergue-se na praia de Miramar sobre um afloramento rochoso com mais ou menos 298 milhões de anos, a capela do Senhor da Pedra dedicada ao Cristo Crucificado. Este pequeno templo votivo, testemunha silenciosa da imensa profundidade do tempo geológico, como um ponto de confluência entre a ancestralidade da Terra e a incessante busca humana por significado. A sua presença, ora solitária e batida pelas marés vivas do inverno, que a transformam numa ilha, ora vibrante e festiva no Domingo da Santíssima Trindade, quando as populações do Douro Litoral aqui afluem em romaria, durante três dias, desvenda a complexidade da religiosidade e da espiritualidade de uma região. Ao seu lado desagua a pequena ribeira do Espírito Santo.

A identidade mutável de um lugar, como a de um povo, é tecida por fios de história, de crenças e de paisagem. A Capela do Senhor da Pedra é, nesse sentido, um objeto multifacetado que nos interpela. Distingue-se pela sua localização singular, pela sua arquitetura e pelas narrativas que a envolvem. Mas, para além da sua materialidade, é a carga de significado e o valor que lhe são atribuídos que a tornam um pilar da identidade local.

A idade da sua construção

Um painel de azulejos na fachada aponta para 1686, mas a ausência de documentação que corrobore essa data leva-nos por outros caminhos, e quem e porque esta data terá sido lançada? Tem outras duas indicações a referir que foi restaurada em 1936 (os painéis de azulejo devem ter sido colocados nesta data) e 1996.

Nas memórias paroquiais mandadas fazer pelo Marquês de Pombal, numa das suas obras mais interessantes para Portugal, a Gulpilhares em 1758 esta capela e qualquer tipo de culto associado ainda não existe, tal não significa que não se dirigissem já para o local devoções populares.

Em junho 1763 o Pároco de Gulpilhares, Francisco Caetano de Sousa Sarmento, pede ao bispo do Porto que a capela seja benzida e que seja trazida em procissão uma imagem do senhor da Cruz da igreja matriz, o que aconteceu no dia 13 de junho desse ano.

Esta data harmoniza-se perfeitamente com o estilo Rococó da talha dos 3 retábulos interiores, ocupando cada um dos lados das paredes, os outros 3 lados são ocupados pela porta principal, porta lateral e a porta de acesso a sacristia.

A construção desta capela insere-se num contexto histórico e estético particular: o Barroco. Um período de exuberância, impulsionado pela riqueza que chegava do Brasil e pela necessidade da Igreja Católica de reafirmar a sua presença face ao Protestantismo. Grandes obras, fausto e teatralidade tornaram-se instrumentos para cativar a fé. A capela do Senhor da Pedra, é um exemplo notável dessa arte cenográfica, um palco para romarias e procissões, onde a fé se manifesta em toda a sua opulência.

As Lendas do Senhor da Pedra

A razão da sua implantação neste local específico, sobre os milenares rochedos, continua a ser um fértil terreno para lendas. A mais difundida fala de um agradecimento por um milagre que salvou pescadores de um naufrágio – uma narrativa que ecoa a tradição de monumentos votivos no litoral português.

Outra lenda refere uma luz misteriosa que pairava sobre o leixão, interpretada como um sinal divino, quando se tentava construir a capela em terra e então o povo viu-se obrigado a fabricar o templo no rochedo.

 E, ainda, a curiosa história da imagem de Cristo que teria chegado pelo mar, acompanhada pela marca de uma “pegada de boi bento” na rocha. O certo é que a pegada ainda não vi nenhuma.

Litolatria e Sincretismo: O Diálogo com o Sagrado Primitivo

Estas narrativas, entre o milagre e o sinal, apontam para uma dimensão mais profunda, a possibilidade de uma cristianização de cultos ancestrais. Muitos afloramentos litorais, desde tempos imemoriais, foram associados a um fundo mágico e religioso, uma litolatria que reconhece o sagrado na própria rocha. O caso de Corrobedo, na Galiza, com a lenda do castelo mouro petrificado, ou os “leixões” de Matosinhos, onde a Imagem do Bom Jesus apareceu, são exemplos eloquentes dessa ligação primária entre a rocha e o divino. A devoção ao Senhor da Pedra enquadra-se, pois, nessa ancestralidade.

E a verdade é que, apesar da fervorosa devoção católica, a capela do Senhor da Pedra continua a ser um polo de práticas que se afastam da ortodoxia. Rituais de magia e feitiçaria, fenómenos de sincretismo religioso, persistem ainda hoje. A busca por curas, por vezes associadas a males cutâneos, como os “cravos” (segundo a indicação local, revela a persistência de uma religiosidade popular que busca auxílio em forças misteriosas.

As “pegadas” na rocha, atribuídas ao Boi Bento, à burrinha de Nossa Senhora, ou mesmo ao cavalo do “Desejado” D. Sebastião, são um exemplo notável da capacidade humana de criar significado e de integrar o inexplicável na sua própria cosmogonia.

A Geologia

Para além da sua dimensão cultural e espiritual, a Capela do Senhor da Pedra é também um geomonumento com belas rochas bandadas. Os afloramentos graníticos, segundo datações mais recentes em 2000 com método geocronológico U-Pb em diferentes frações obtiveram a idade de 298±12 Milhões de anos para a sua instalação e revelam estruturas de fluxo magmático, com a alternância de bandas escuras de biotite e bandas mais claras, testemunho da cristalização simultânea de dois magmas imiscíveis. O granito formou-se durante a orogenia hercínica quando os continentes estavam a convergir para formar o supercontinente Pangeia. Esta espetacularidade geológica, por si só, poderia ter influenciado a escolha deste local para um fenómeno sincrético de litolatria, onde a grandiosidade da natureza se funde com a busca do transcendente.

A atual capela, de estilo barroco, erguida em granito, com a sua planimetria centrada de forma hexagonal, suscita opiniões diversas. Contudo, é a sua funcionalidade que se impõe: a forma e a orientação da porta, voltada de costas para o mar, para a defesa dos ventos fortes do Norte e das inundações das marés, revelam uma sabedoria construtiva, um pragmatismo que dialoga com a força implacável do mar. A galilé simples que enquadra a entrada, os símbolos iconográficos da Paixão de Cristo gravados na porta de madeira, e o interior com coro alto e púlpito simples, convidam à introspeção e à contemplação…e ao namoro. Tem ainda um bonito Cristo crucificado barroco, na capela principal e uma Santa Luzia e a Nossa Senhora de Fátima nas capelas laterais.

Presente e Futuro: A Felicidade à Beira-Mar

Hoje, a Capela do Senhor da Pedra é um ponto de excelência numa praia de veraneio, um enquadramento paisagístico que atrai inúmeros visitantes. Turistas curiosos, amantes que partilham beijos ao entardecer, num ritual quase instituído no inconsciente coletivo, revelam a capacidade deste lugar de evocar a felicidade e as “brancas paixões”. É a confirmação de que estes locais, impregnados de história e lenda, têm o poder de tocar a alma humana e de a tornar mais feliz.

A romaria, as promessas, o “Primeiro Banho do Ano” – uma tradição iniciada por um grupo de amigos há 46 anos e que hoje congrega multidões – são manifestações contemporâneas de uma religiosidade popular que, por vezes, transcende a própria liturgia. Como nos confidencia o Sr. José Bernardo ( o mesmo senhor que nos falou na crua dos cravos), dono do café em frente, esta “romaria” com o seu “abastardamento indumentário” reflete a busca incessante do ser humano por alegria e pela cura das suas aflições.

A Capela do Senhor da Pedra, para lá das suas paredes e da sua cronologia, é um símbolo. Símbolo de uma região que, em 250 anos, tem procurado dialogar com o sagrado e com o mar. É um lugar onde a rocha se encontra com a fé humana, onde o mistério se cruza com a devoção, e onde, no fundo, se celebra a própria vida, em todas as suas complexidades e manifestações.

Cronologia:

Linha do Tempo dos Principais Eventos da Capela do Senhor da Pedra

-Há aproximadamente 298 ± 12 milhões de anos (Período Hercínico): Formação dos afloramentos graníticos onde a Capela do Senhor da Pedra está situada, durante a orogenia hercínica, quando os continentes convergiam para formar a Pangeia.

-Tempos Imemoriais (período pré-Cristão): Os afloramentos rochosos litorais, incluindo o local da Capela do Senhor da Pedra, poderã estar associados a práticas de litolatria (culto à rocha) e a um fundo mágico e religioso primitivo? Apesar de não conseguir ver nenhuma fossete.

-Século XVII (especificamente 1686 – data na fachada, mas não corroborada): Um painel de azulejos na fachada da capela indica o ano de 1686 como sua construção. No entanto, a ausência de documentação para essa data sugere que não é a data real da edificação.-

-1758: Nas Memórias Paroquiais (encomendadas pelo Marquês de Pombal), não há menção à Capela do Senhor da Pedra nem a qualquer culto organizado no local em Gulpilhares. Isso não exclui a existência de devoções populares no local.

-Junho de 1763: O Pároco de Gulpilhares, Francisco Caetano de Sousa Sarmento, solicita ao Bispo do Porto a bênção da capela.

-13 de junho de 1763: A Capela do Senhor da Pedra é benzida, e uma imagem do Senhor da Cruz é trazida em procissão da igreja matriz. Esta data é consistente com o estilo Rococó dos retábulos interiores.

-Há 46 anos (a partir da data do texto): Início da tradição do “Primeiro Banho do Ano” por um grupo de amigos, que se tornou um evento com multidões.

-Presente: A Capela do Senhor da Pedra é um geomonumento e um ponto de atração turística. Continua a ser um centro de devoção católica, mas também de práticas de religiosidade popular, sincretismo e rituais (magia, feitiçaria, busca de curas). É um local onde ocorrem as romarias anuais no Domingo da Santíssima Trindade, o “Primeiro Banho do Ano”, e é associada a momentos de felicidade e “paixões.

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