Igreja de São João Batista – Matriz de Vila do Conde (**)
A Igreja de São João Batista em Vila do Conde é uma das maiores expressões do estilo manuelino em Portugal, em diálogo com o gótico tardio. Pela qualidade da sua arquitetura e pela relevância histórica que assumiu na malha urbana, foi classificada como Monumento Nacional em 1910.
História e Contexto
No final do século XV, Vila do Conde era uma vila florescente, enriquecida pelo comércio marítimo e pela construção naval. A matriz pré-românica de São João, localizada no monte do atual Mosteiro de Santa Clara, tornara-se desadequada: pequena, periférica e afastada da zona ribeirinha, onde pulsava a vida económica.
Em 1466, uma ata de vereação já apontava para a necessidade de obras, mas a verdadeira ambição da comunidade foi construir uma nova matriz, à altura da prosperidade da terra.
Por volta de 1496-1497, começaram os primeiros ensaios de construção, ainda junto ao monte. Contudo, em 1502, a passagem de D. Manuel I por Vila do Conde alterou definitivamente o rumo do projeto. Sensibilizado pelos moradores, o rei não só financiou a obra como determinou a sua transferência para o Campo de São Sebastião, no coração da vila baixa.
O documento régio de 5 de dezembro de 1502 é revelador: descreve a planta da nova matriz, prevê a criação de uma praça adjacente e até a abertura de uma nova rua alinhada com o portal principal. Mais do que uma decisão arquitetónica, tratava-se de um gesto de renovação urbanística manuelina, que em várias localidades do reino procurava articular os espaços de poder: igreja, paços do concelho e pelourinho.
A Construção e os Mestres- Aparece João Castilho
As obras iniciaram-se sob direção de mestres biscainhos: João de Rianho, substituído em 1500 por Sancho Garcia, seguido de Rui Garcia de Penagós e, em 1507, Gonçalo Anes, de Vila Real.
O momento decisivo chegou em 1511, quando entra em cena João de Castilho, mestre oriundo da Cantábria, que se tornaria uma das figuras maiores da arquitetura portuguesa do século XVI.
A obra de Vila do Conde foi, de facto, a sua segunda grande empreitada em Portugal, logo após a Sé de Braga, aqui aparecendo pela mão do Arcebispo Dom Diogo de Sousa.
Aqui, Castilho ensaia soluções que viriam a marcar a sua carreira: a cobertura da capela-mor com a sua sofisticada abóbada de combados, e o desenho do portal axial, verdadeiro cartão de visita do manuelino castilhano. Estas intervenções projetam Vila do Conde para o mapa das inovações arquitetónicas do seu tempo, num momento em que Castilho ainda consolidava a sua linguagem antes das obras do Mosteiro dos Jerónimos e de Tomar.
A igreja abriu ao culto em 1518.
Afirmação e Crescimento
Em 1518-1519, o arcebispo de Braga, D. Diogo de Sousa, instituiu uma Colegiada Menor, confirmada pelo Papa Clemente VII em 1524, elevando o estatuto do templo.
Em 1542, os mareantes locais ergueram a capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, no transepto sul, consagrando a íntima ligação entre a igreja e a vida marítima da vila. No segundo quartel do século XVI, surgiu a capela norte, dedicada a São Miguel e mais tarde a Nossa Senhora da Assunção.
O século XVII acrescentou a torre sineira com balcão de balaústres e o revestimento de azulejos na capela-mor e no transepto.
O século XVIII trouxe a exuberância barroca: retábulos, púlpito, órgãos e talha dourada multiplicaram-se, destacando-se o retábulo-mor, concluído em 1740 por Manuel Pereira da Costa Noronha, mestre entalhador do Porto.
Nas Memórias Paroquiais de 1758, a igreja surge descrita como grandiosa, dotada de múltiplos altares, irmandades e capelas, refletindo a sua centralidade na vida espiritual e social de Vila do Conde.
Percalços e Restauros
A história da matriz não foi isenta de infortúnios: em 1860, um raio atingiu a torre durante a missa; em 1951 e 1957, temporais arruinaram a cobertura; e em 2018, caiu parte de um retábulo.
Contudo, sucessivas campanhas de restauro — sobretudo no século XX, sob a égide da DGEMN — permitiram salvaguardar o monumento. Hoje, a igreja mantém-se como símbolo maior da identidade vilacondense, testemunho da fé e da arte ao longo de séculos.

O Exterior da Igreja
A igreja apresenta planta em cruz latina, com três naves, transepto e cabeceira saliente. As paredes da nave central e da capela-mor são coroadas por merlões, evocando um carácter fortificado.
A torre sineira quadrangular, com balcão de balaústres, marca a silhueta do edifício. O portal lateral, de arquivolta ogival sobre colunas torsas, revela já a inventiva manuelina.
O pórtico principal é um programa iconográfico de grande riqueza: três arcos trilobados ladeados por esculturas.
Tem um escudo com uma nau que deve representar o brasão de Vila do Conde ligada a atividade marítima com 5 quinas.
Ao lado temos uma segunda escultura com um homem de braços abertos segurando nas mãos o que parecem ser duas pedras saindo de uma taça (o que pode representar o cristo redentor com uma hóstia) ou mesmo o santo Graal.
Do lado esquerdo do brasão de Vila do Conde temos o sol e a lua tendo ao meio uma cruz nodosa.
Do outro lado da porta na mesma linha temos o escudo real entre duas esferas armilares simbolizando Portugal e o rei dom Manuel I.
Em baixo em baldaquino com dossel temos são João Batista que se encontra e rodeado pelo tetramorfo dos evangelistas
É uma síntese do universo manuelino, onde se cruzam poder régio, fé e simbolismo marítimo. É um dos nossos ícones da arquitetura sagrada portuguesa.

O Interior da igreja
O interior organiza-se em três naves, separadas por arcos de volta inteira sobre colunas oitavadas. A madeira domina o pavimento e a cobertura das naves.
Na capela-mor, a abóbada artesoada de João de Castilho revela o virtuosismo técnico do mestre.
Retábulos de talha dourada, colunas salomónicas e imagens completam o espaço.
A capela de Nossa Senhora da Boa Viagem (1542), construída pelos mareantes, é integralmente revestida de azulejo seiscentista. Do lado oposto, a capela de Nossa Senhora da Assunção conserva uma imagem gótica de São João Batista e um retábulo barroco de 1740.
Repare-se ainda no belíssimo painel barroco de São Miguel Arcanjo a pesar as almas.
A pia batismal manuelina, os altares barrocos e os vitrais de 1909, executados em Paris, reforçam a dimensão artística do templo.
A Praça
O espaço exterior não pode ser dissociado da igreja. A nova praça planeada por D. Manuel articulava-se com os Paços do Concelho e o pelourinho de 1540, formando um dos mais emblemáticos conjuntos urbanísticos manuelinos do país. Ainda hoje, o visitante pode sentir esse diálogo entre poder religioso e civil, numa malha urbana que testemunha a grandeza de Vila do Conde nos séculos XV e XVI.