Adeganha no concelho de Torre de Moncorvo, é uma aldeia típica transmontana (perdida no tempo, mas não na geografia da “alma portuguesa”) e espreita a poente a vasta extensão do Vale da Vilariça (**), da Senhora do Castelo.
Em redor reparamos nas leiras do centeio, os olivais cobrindo os montes, a penedia granítica encrespada, e cortada pela linearidade das falhas associadas à grande Falha do vale da Vilariça.
Em pequenas construções toscas de pedra refugiam-se animais, e o granito é aproveitado para paredes ou para eiras se fazem as malhadas.
Eis o que nos diz José Saramago, na sua “Viagem a Portugal”.
«Esta estrada vai dar à aldeia de Estevais, depois a Cardanha e Adeganha. O viajante não pode parar em todo o lado, não pode bater a todas as portas a fazer perguntas e a curar das vidas de quem lá mora. Mas como não sabe nem quer despegar-se dos seus gostos e tem a fascinação do trabalho das mãos dos homens, vai até Adeganha onde lhe disseram que há uma preciosa igrejinha românica, assim deste tamanho. Vai e pergunta, mas antes pasma diante da grande e única laje granítica que faz da praça, eira e cama de luar no meio da povoação». (4)
O Exterior da Igreja da Adeganha
Para mim a igreja de Adeganha é a segunda mais bela igreja românica transmontana (a primeira é a igreja de São Salvador Anciães (***).
A igreja de Adeganha foi edificada no século XIII, segundos uns, ou no século XII, conforme afirma o Abade de Baçal. Dedicada ao Apóstolo Santiago, originalmente dotada de um alpendre exterior para albergar os peregrinos, ela situava-se num dos caminhos de Santiago de Compostela.
O bestiário da cachorrada é de grande qualidade escultural e com olhar arguto, culto e imaginoso é possível passarmos algum tempo a tentar descortinar o seu significado.
A fachada principal da Igreja de Adeganha, virada a poente, ergue-se altaneira, de dupla ventana.
O portal principal de arco-quebrado prenuncia o estilo gótico. Possui duas arquivoltas com decoração fitomórfica assente em peanhas com cabeças antropomórficas atlantes.
Três estranhas figuras femininas em baixo relevo-as Três-Marias (Três Irmãs, Três Comadres) quebram a frugalidade ornamental da fachada, estas foram imortalizadas em estranha lenda.
A do meio está a dar à luz, protegidas pelas outras duas, o que parece uma cabaça, mas que deve ser na realidade um recém-nascido, coadjuvado por duas comadres. Será um símbolo de católico das dores da Virgem no parto, a que se associa símbolos de fertilidade e acompanhamento nas dores e no perigo de morte do parto? Se assim for como estamos longe das labaredas proclamadas na lenda (umas linhas mais a frente e a lenda será narrada).
Esta cena poderá querer representar o nascimento de Jesus Cristo, com a Virgem ao centro, sendo ladeada por duas parturientes a ajudarem a Maria.
Num relevo representado imediatamente ao lado, uma quarta figura surge a correr, com utensílios na mão. Será uma representação de apoio ao parto?
O outro grupo escultórico é mais pequeno e representa um homem com dois objetos na mão que lembram dois pergaminhos. Qual o seu significado?
Num baixo-relevo, temos um casal, sendo que ela (?) está deitada, e na sua cabeceira, de pé temos homem, com perna fletida perto da cabeça da mulher.
Este, por sua vez, expõe o sexo, enquanto na mão direita segura um objeto, tendo a outra mão junto da cabeça da mulher. Será a preparação de um ato sexual, fonte criadora da vida? Será o tratamento de um doente, mas sendo assim porque será que o homem tem a mão nas partes pudibundas? Mas talvez também seja a tal senhora gravida ou após o parto, no leito.Na verdade a figura poderá ter outro significado.
Ao lado suportando uma peanha, como se fosse o peso do mundo, uma estranha figura feminina com esgar de sofrimento, de boca e olhos fechados, como dando à luz. Será um apelo a penitência e ao sacrifício, exigido aos indivíduos do mundo medieval?
Não paramos de olhar para os modilhões exteriores enigmática arte românica como, lobos, triângulos, rostos de homem e mulher, aves, bovídeos…
Todos estes símbolos enigmáticos foram criados e entendidos pela mentalidade do Homem medieval. É por essa e por outras que eu gosto do românico, o mais telúrico estilo arquitetónico e para mim um verdadeiro estado de sublimação, apesar de saber que estão ao serviço da religião com temas psicomáquicos onde se aponta os “combates da alma”, manifestados através das lutas entre os vícios e as virtudes, entre o bem e o mal,
Dois túmulos de arcossólios a relembrarem a inevitabilidade da finitude da existência.
O Interior da Igreja de Adeganha
A temática no interior da igreja de Adeganha, é hagiográfica, surgindo, na única nave, temas cristológicos. O programa decorativo, integra pintura mural, pintura a óleo, e talha dourada barroca.
A Igreja de Adeganha conserva bons frescos, a relembrar de certo modo, a capela da Nossa Senhora de Teixeira (Açoreira), redescobertos e restaurados recentemente.
Os frescos dos séculos XV e XVI, apenas no século XX foram descobertos, porque estavam tapados com uma grossa camada de cal.
É de grande beleza o enorme São Cristóvão, envolto por moldura de losangos denteados e frisos de motivos geométricos e vegetalistas estilizados; quem terá sido este artista?
“A nave conserva elementos de quatro campanhas, distintas, de pintura mural, datáveis entre os últimos anos do século XV e o final da década de 30 do século XVI, com as representações de São Cristóvão (já referido), São Bartolomeu, São Longinos e Stephaton, São Francisco e a Missa de São Gregório, Santa Catarina e Santo António.
São particularmente interessantes as composições bíblicas dos primeiros momentos da vida de Cristo e Maria: Anunciação, Natividade, Apresentação no Templo e Epifania.
Na capela-mor, enquadrado por diversos motivos geométricos e outros padrões decorativos, foi pintado Santiago Maior, vestido de peregrino que se encontra escondido pelo altar barroco.” (2).
Os frescos da Igreja de Adeganha são um interessante testemunho do final da arte medieval portuguesa
O retábulo-mor, de linguagem barroca, integra duas pinturas sobre madeira quinhentistas e que são as tábuas de “São Martinho” e “São Lourenço”, pinturas a óleo sobre madeira de castanho atribuídos a Manuel Vicente e Vicente Gil, respetivamente pai e filho, denominados como mestres do Sardoal. Pintores que foram ativos nos reinados de Dom João II e D. Manuel I e que são os principais representantes da pintura manuelina Coimbrã.
A Lenda das Três-Marias”.
Reza a história que as Três-Marias eram irmãs e pastoras. Enquanto o gado pastava, elas entretinham-se a jogar às cartas. Mas uma das três irmãs ganhava sempre e não havia maneira de a fazerem perder, as outras duas ficavam roídas de inveja e intrigadas – Seria ela bruxa? Ou aquilo seria obra do Céu? Nem uma coisa nem outra.
Ela ganhava sempre porque jogava com manha.
Finalmente as outras duas descobriram e combinaram desforrar-se. Fizeram uma grande fogueira, com muita lenha, e empurraram para a fogueira a irmã batoteira que lá ficou a arder em grandes chamas.
Se tentava sair as outras duas não deixavam e com os dedos em “figas” diziam: Arde e ganha! Arde e ganha! E assim ficou o nome de Arde e Ganha, Adeganha.
Lenda a relembrar tempos de intolerância, materializados durante 3 séculos na inquisição portuguesa e que foi uma das páginas mais negras da nossa história – a instituição ainda hoje se repercute na nossa maneira atávica de ser e fazer.
Para não terminar a visita à igrejinha de um modo triste, e não levar os leitores para sentimentos de culpa congénitos, voltemos para rematar, a um autor que nos orgulha e que também aqui esteve.
“Enfim, a igreja é esta. Não caiu em exagero quem a gabou. Cá nestas alturas, com os ventos varredores, sob o cinzel do frio e da soalheira, o templozinho resiste heroicamente aos séculos. Quebraram-se-lhe as arestas, perderam a feição as figuras representadas na cachorrada a toda a volta, mas será difícil encontrar maior pureza, beleza mais transfigurada. A igreja de Adeganha é coisa para ter no coração, como a pedra amarela de Miranda”. (José Saramago, “Viagem a Portugal”) (4)
Nota pessoal: Estive pela primeira vez na igreja de Adeganha início da década de 90, estava então numa viagem de estudo de geologia, orientada sempre com muita sabedoria e alegria pelo Dr. Luís Nabais Conde falecido no ano de 2022. Fica uma grande saudade pelos seus ensinamentos e pela sua grande bondade e cultura. Obrigado pelos felizes velhos tempos.
Informações adicionais:
(1)- Câmara Municipal de Torre de Moncorvo
(2)-Site dos Monumentos Nacionais
(3)-A lenda foi retirada da Terra Quente (artigo de 15-3-2005)
(4)- Viagem a Portugal, José Saramago, 1980
Cronologia:
Século XII ou XIII:
-Construção da Igreja Românica de Santiago Maior em Adeganha, possivelmente servindo como ponto de apoio para peregrinos em caminho para Santiago de Compostela.
Séculos XV e XVI:
-Realização de pinturas murais no interior da igreja, incluindo representações de São Cristóvão, São Bartolomeu, São Longinos e Stephaton, São Francisco e a Missa de São Gregório, Santa Catarina, Santo António e cenas da vida de Cristo e Maria.
Época Indeterminada:
-Lenda das Três-Marias se populariza, explicando a origem do nome “Adeganha”.
Século XX:
-Redescoberta e restauro dos frescos da igreja, anteriormente ocultos por camadas de cal.
Década de 1990:
-Visita do autor José Saramago à Igreja de Adeganha, registrando suas impressões na obra “Viagem a Portugal” (1980).
Personagens e figuras Históricas:
-Apóstolo Santiago: também conhecido como São Tiago Maior, foi um dos doze apóstolos de Jesus Cristo, venerado como padroeiro da Espanha. Após a sua morte, segundo a tradição, os seus restos foram levados para a Galiza, onde se encontram na Catedral de Santiago de Compostela, destino do famoso Caminho de Santiago. Este percurso espiritual e cultural tornou-se um dos maiores símbolos de peregrinação cristã na Europa.
Artistas:
Mestres do Sardoal (Manuel Vicente e Vicente Gil): Pintores manuelinos conhecidos como os Mestres Pintores do Sardoal foram artistas renascentistas portugueses de Coimbra. Especializaram-se na pintura sacra, contribuindo para a riqueza artística das igrejas locais, como a Igreja matriz do Sardoal. Têm algumas obras expostas no Museu Nacional Machado de Castro. Reconhecidos pela influência flamenga e atenção aos detalhes, deixaram um legado importante na arte religiosa portuguesa. Na Igreja românica de Adeganha têm as tábuas quinhentistas de “São Martinho” e “São Lourenço” presentes no retábulo-mor da igreja.
Artista dos Frescos: Permanece desconhecido o nome do artista responsável pelas pinturas murais da igreja, datadas dos séculos XV e XVI.
A Lenda das Três-Marias: Irmãs pastoras protagonistas da lenda que explica a origem do nome “Adeganha”. Uma delas, acusada de bruxaria por vencer sempre nos jogos de cartas, é queimada pelas outras duas.
É uma história simbólica que reflete a intolerância e a manipulação social, elementos presentes durante a Inquisição Portuguesa. De acordo com a lenda, as três irmãs eram pastoras, mas a dinâmica entre elas era marcada pela inveja e traição. A irmã que ganhava sempre nas cartas é vista como uma figura “diferente” e, devido à sua habilidade, é alvo de vingança por parte das outras duas, que a empurram para uma fogueira. O grito “Arde e ganha!” simboliza a tentativa de punir e eliminar aquilo que é considerado “errado” ou “não convencional”. A história reflete os tempos de intolerância e repressão, em que a diferença ou a perceção de bruxaria eram motivos suficientes para perseguições brutais. A lenda, portanto, carrega uma crítica à intolerância e ao medo do diferente, temas profundamente relacionados com os abusos e excessos da Inquisição.
-Abade de Baçal: pseudónimo de Francisco Manuel Alves (1865–1947), foi um sacerdote, historiador e arqueólogo português, natural de Baçal, Bragança. Dedicou a vida ao estudo da história, cultura e arqueologia de Trás-os-Montes, sendo a sua obra maior as Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança. Reverenciado como um dos principais estudiosos regionais, deixou um legado cultural vasto e valioso. Atribui a construção da igreja da Adeganha ao século XII.
-José Saramago: (1922–2010), escritor português e vencedor do Prémio Nobel de Literatura em 1998, destacou-se pelo estilo único, marcado por frases longas e reflexivas. Nascido em Azinhaga, Ribatejo, trabalhou como serralheiro, jornalista e editor antes de alcançar reconhecimento literário com obras como Memorial do Convento e Ensaio sobre a Cegueira. Crítico da sociedade e defensor de valores humanistas, viveu os últimos anos em
Glossário:
-Adeganha: A aldeia do concelho de Torre de Moncorvo, localizada em Trás-os-Montes, conserva a essência das tradições rurais da região. Inserida numa paisagem com beleza natural, caracterizadas por montes, vales e campos cultivados, adjacente ao Vale da Vilariça. Tem como monumentos notáveis a sua igreja românica (***) e o Santuário da Senhora do Castelo (*).
-Vale da Vilariça: vale profundo, por onde corre a ribeira da Vilariça e o rio Sabor e com solo muito fértil origina grande riqueza agrícola. Foi formado por uma grande falha geológica de desligamento esquerdo, que cria zonas geotermais, que se desenvolve deste Puebla Sanabria, Bragança, Longroiva, Manteigas e Unhais da Serra e pelo fenómeno da “rebofa”.
-Românico: Estilo artístico e neste caso arquitetónico que se desenvolveu na Europa entre os séculos XI e XIII, caracterizado por arcos de volta perfeita, abóbadas de berço e paredes grossas. É o primeiro estilo unificador da cultura ocidental cristã. Destaca-se a escultura na cachorrada ou modilhões.
-Cachorrada: Ornamentação escultural em forma de cabeças e figuras de animais, humanas, vegetalistas que simbolizam a Psicomaquia simbólica do ser humano medieval.
-Fitomórfica: Que se assemelha a formas de plantas.
-Atlantes: Figuras masculinas esculpidas que servem como suporte arquitetónico.
-Hagiográfica: Relativo à vida dos santos.
-Pintura Mural ou Pintura de Fresco: Pintura feita diretamente sobre uma parede.
-Talha Dourada: Escultura em madeira revestida com folhas de ouro dos séculos XVII e XVIII, do período Barroco ou do protobarroco.
-Retábulo-mor: Conjunto de pinturas ou esculturas que decoram o altar principal de uma igreja.
-Manuelino: Estilo artístico português, de cariz messiânico que floresceu durante o reinado de D. Manuel I (1495-1521) e ligado aos Descobrimentos Portugueses.
-Lenda: Narrativa tradicional que mistura elementos históricos e ficcionais, por vezes narram arquétipos e tem muitos factos por vezes relacionadas com o Mito.
-Inquisição Portuguesa:
A Inquisição em Portugal teve início em 1536, com a sua instituição formal pelo Rei Dom João III, muito mitigada no tempo do Marques de Pombal perdurou até 1821. Durante esse período, a Inquisição portuguesa teve como principais alvos os hereges, os judeus convertidos ao cristianismo (marranos), muçulmanos e outros grupos considerados suspeitos de heresia, incluindo os protestantes.
A Inquisição foi uma instituição religiosa e judicial, sob o controle da Igreja Católica, que se dedicava a investigar, processar e punir aqueles considerados culpados de heresia, muitas vezes através de tortura e execuções. A Inquisição em Portugal foi influenciada pela Inquisição Espanhola, embora com características e dinâmicas próprias.
A inquisição em Portugal durou aproximadamente 285 anos, até a sua extinção no início do século XIX.
-Telúrico: Uma paisagem telúrica é uma paisagem que carrega um significado profundo e simbólico relacionado com as Rochas e a paisagem. Uma paisagem telúrica não é apenas visual ou física, mas também emocional e espiritual, transmitindo uma energia ou força cósmica associada à natureza.
Em muitos contextos, uma paisagem telúrica é vista como um lugar de grande poder, seja por sua beleza natural ou a sua ligação com o sagrado ou por Este conceito é frequentemente utilizado em literatura (leia-se o nosso escritor mais Telúrico-Miguel Torga), ou mesmo nas outras formas de arte e até na mitologia, onde certos lugares, como montanhas, rios ou florestas, são interpretados como tendo uma influência profunda sobre o ser humano, despertando emoções intensas ou despertando o imaginário coletivo.
-Psicomáquia: Que representa a luta entre o bem e o mal, entre as virtudes e os vícios. Psychomachia (Batalha da alma) é um poema do escritor latino cristão Prudêncio (348–c.410) que apresenta lutas alegóricas entre as virtudes e os vícios.