O Museu da Lucerna (**) em Castro Verde: Um Olhar sobre a Luz que o Tempo Não Apaga

Foram descobertos milhares de lucernas romanas em Castro Verde, Alentejo, em 1994, um achado que se revelou ser o maior conjunto do mundo. Estas lucernas, datadas entre os séculos I e III d.C., são mais do que simples objetos de iluminação; representam a vida quotidiana, as crenças e a expressão artística da época, sugerindo a possível existência de um santuário no local. O Museu da Lucerna, inaugurado em 2004, exibe esta coleção ímpar, permitindo aos visitantes conhecer a história e a cultura que rodeiam estes artefactos. A criação e o desenvolvimento do museu estão intrinsecamente ligados ao trabalho incansável do arqueólogo Manuel Maia, cuja dedicação foi crucial para desvendar e preservar este importante legado romano na região. O museu e as lucernas funcionam como um farol de conhecimento, ligando o presente a um passado distante e convidando à reflexão sobre a permanência da memória.

Linha Cronológica

Séculos I a III d.C.: Período de produção e uso das lucernas romanas descobertas em Castro Verde. Sugere-se que o local era um ponto focal, possivelmente o santuário ligado à cidade de Arannis. A vala de depósito das lucernas acumula milhares destas peças ao longo de aproximadamente 200 anos dentro deste período.

1994: Durante obras de ampliação do cemitério junto à Igreja de Santa Bárbara dos Padrões em Castro Verde, é descoberta uma grande quantidade de lucernas romanas. Manuel Maria Maia e Maria Pereira Maia estão envolvidos nesta descoberta e desempenham um papel crucial na identificação da sua importância, sugerindo a existência de um santuário associado.

2004: O Museu da Lucerna abre as suas portas em Castro Verde. Este museu é uma parceria entre a Cortiçol – Cooperativa de Informação e Cultura de Castro Verde e o Município de Castro Verde, com o objetivo de acolher, estudar e divulgar o acervo de lucernas descoberto.

2018: A coleção de lucernas romanas de Castro Verde é reconhecida pela National Geographic como a maior do mundo.

2021: Manuel Maria Maia, arqueólogo impulsionador do projeto e das descobertas em Castro Verde

A Descoberta e a Memória Profunda da Terra

Em Castro Verde, nas terras do Baixo Alentejo, onde a planície se estende sob um céu imenso emergiu, em 1994, um testemunho silencioso romano, mas eloquente de um passado longínquo. A descoberta deu-se, junto à igreja e ao cemitério de Santa Bárbara dos Padrões. Aí, os trabalhos arqueológicos trouxeram à superfície, não tesouros de ouro e prata, mas sim a humilde matéria de que se fez a luz na Antiguidade: milhares de lucernas de época romana, datadas entre os séculos I e III d.C.

O Enigma Arqueológico de Santa Bárbara de Padrões: Da Romanidade ao Cristianismo

O sítio da Igreja de Santa Bárbara de Padrões, cuja arquitetura atual remonta aos séculos XV/XVI, é um palco onde a história se tem vindo a decifrar com a paciente perseverança do arqueólogo. A sua implantação privilegiada na peneplanície alentejana não é, por certo, obra do acaso, antes denota uma escolha que, desde a antiguidade recuada, lhe conferiu um profundo simbolismo religioso através da paisagem. A descoberta de José Leite de Vasconcelos, em 1897, que o identificou como uma cidade romana, lançou as bases para uma compreensão mais complexa do lugar.

As campanhas arqueológicas de 1983, 1994, 2008 e 2013 vieram, de facto, corroborar a presença de uma ocupação romana, interpretada, com notória pertinência, como um santuário. A cronologia do local, que se estende de um ponto inicial no século II a.C. até aos séculos V/VI d.C., atesta uma longevidade invulgar, testemunho da sua importância ininterrupta. A descoberta de um complexo termal e, sobretudo, do depósito votivo, assombrosamente constituído por milhares de lucernas romanas, aponta, com eloquência, para a existência de um santuário associado a uma fonte de águas reputadas por suas virtudes medicinais. O que aqui se desenha é, pois, a paisagem de uma crença ancestral, ligada à sacralidade da água.

Com a ascensão e consolidação do cristianismo, operou-se uma transformação significativa no espaço. Uma igreja, erguida nos séculos V/VI, parece ter sido inteligentemente edificada, aproveitando a solidez dos muros do conjunto termal pré-existente. Este ato, longe de ser meramente pragmático, ilustra a forma como as novas fés se sobrepuseram e, por vezes, se enraizaram nos substratos das antigas. No século XVI, essa primitiva construção cristã terá sido substituída por uma nova igreja, num movimento contínuo de adaptação e renovação.


Depósitos Rituais Romanos: Um Olhar Comparativo

Desde a década de 1920 que a arqueologia tem vindo a desvendar, no âmbito do mundo romanizado, a existência de depósitos rituais que contêm milhares de lucernas, por vezes acompanhadas de ex-votos. Estes achados oferecem-nos uma janela para as práticas votivas e a religiosidade popular da época. Em Portugal, a literatura arqueológica regista a publicação de dois depósitos notáveis que merecem particular atenção.

Um deles, localizado em Peroguarda, no concelho de Ferreira do Alentejo, apesar de não ter sido escavado com o rigor metodológico que hoje se impõe, foi descrito por Abel Viana de uma forma que sugere uma tipologia idêntica ao conjunto de Santa Bárbara de Padrões. Esta analogia é, por si só, um indício que carece de aprofundamento. Um outro depósito, na Horta do Pinto, em Faro, embora ainda não tenha sido alvo de um estudo recente e exaustivo, aparenta ser também do tipo referido, apresentando um contexto arqueológico assaz semelhante. A contemporaneidade e uma possível inserção num mesmo “caminho” ou rede de santuários são hipóteses que se perfilam, abrindo caminho para novas investigações que possam desvendar as interconexões entre estes locais sagrados.

Esta revelação, como que um véu subtil levantado sobre estratos de tempo esquecidos, não é apenas um achado arqueológico; é uma porta aberta para a compreensão da vida quotidiana, das crenças e dos anseios de gentes que habitaram este território há quase dois milénios. As lucernas, na sua diversidade formal e decorativa, são pequenos artefactos que corporizam a necessidade humana primária de iluminação, mas também a expressão artística e o universo simbólico de uma sociedade. São, em si mesmas, pequenas narrativas em barro.

A vastidão deste conjunto – considerado, em 2018, pela National Geographic, o maior do mundo – sugere algo para lá do uso doméstico comum com a existência de um santuário o que adensa o mistério e a importância do local. Um santuário que, talvez, fosse um ponto fulcral na rede viária e cultural do Sul da Lusitânia, possivelmente a mítica Arannis referenciada por Plínio.

O Museu da Lucerna: Um Farol de Conhecimento e Contemplação

Da escuridão da terra para a luz da musealização, o Museu da Lucerna abriu as suas portas em 2004, numa parceria virtuosa entre a Cortiçol – Cooperativa de Informação e Cultura de Castro Verde e o Município local. Instalado num antigo armazém, para acolher a fragilidade e a beleza destas peças, o museu não é apenas um repositório; é um centro vivo de estudo e divulgação.

Aqui, o visitante é convidado a mergulhar no universo das lucernas, a descortinar os segredos da sua produção, as marcas dos oleiros, a diversidade dos motivos decorativos. Cenas do quotidiano romano, figuras mitológicas, representações de animais e objetos banais ganham nova vida, permitindo-nos vislumbrar a riqueza visual e o imaginário de então. Cada lucerna, na sua singularidade, é um fragmento de um vasto painel da vida antiga.

A recriação da vala onde as lucernas foram depositadas, um corte na rocha que ao longo de quatrocentos anos recebeu milhares destas “candeias”, é um momento de profunda introspeção. Sentimos a densidade do tempo, a acumulação de gestos rituais ou quotidianos, a presença quase palpável daqueles que ali deixaram a sua luz, por promessa ou necessidade. É um convite à meditação sobre a transitoriedade da existência e a permanência dos vestígios que deixamos.

O museu, para além da exposição permanente, nutre-se de exposições temáticas e temporárias, mantendo viva a chama da investigação e da partilha do conhecimento. A elaboração de um catálogo científico detalhado é um instrumento crucial para especialistas e estudantes, perpetuando o legado destas descobertas.

Manuel Maia: O Arqueólogo e a Busca Incansável

É impossível falar do Museu da Lucerna sem evocar a figura de Manuel Maria Maia. Impulsionador maior deste projeto, a sua paixão e dedicação à arqueologia de Castro Verde foram incansáveis. Juntamente com a sua esposa, Maria Pereira Maia, desvendou segredos guardados pela terra, numa demanda que se confundia com a própria vida. A descoberta da vala das lucernas, em 1994, durante obras de ampliação do cemitério – “As escavações e o conhecimento avançaram em Castro Verde ao ritmo da morte”, numa frase que condensa ironia e profundidade – é disso o mais eloquente exemplo.

A intuição de Manuel Maia, a sua capacidade de ler os sinais da terra e de questionar o óbvio, foram determinantes. A presença de lucernas usadas em tal quantidade, indiciava inequivocamente a existência de um santuário. A lucerna, tal como a vela dos nossos dias, era um veículo de comunicação com o divino, um gesto de fé gravado no barro.

A sua crença na identificação de Santa Bárbara de Padrões com a antiga Arannis, sustentada em itinerários romanos e na persistência de antigas rotas, demonstra a sua visão abrangente e a sua capacidade de ligar os achados locais a um contexto regional e imperial mais vasto. Manuel Maia, que nos deixou em 2021, legou-nos não apenas uma coleção ímpar de lucernas, mas também uma lição de persistência, rigor científico e amor pela terra e pela sua história.

A Lápide de Espanca: Um Enigma Epigráfico do Sudoeste Peninsular (*)

O Abecedário de Espanca, um achado singular, consiste numa pequena placa de xisto (com 48 x 28 x 2 cm), cuja proveniência exata se perdeu, uma vez que foi encontrada fora de contexto arqueológico. Esta circunstância lamentável priva-nos de uma datação estratigráfica precisa, colocando um desafio adicional à sua interpretação.

A epigrafia gravada nesta placa apresenta-se em duas linhas, cada uma com 27 signos que, à primeira vista, parecem constituir a série completa de uma escrita. A sua interpretação mais plausível aponta para um signário duplo, um exercício de aprendizagem. A primeira linha, traçada com maior segurança e regularidade, sugere o modelo do mestre, enquanto a segunda, de execução mais hesitante, revelaria a mão do aprendiz. Este aspeto pedagógico confere ao Abecedário de Espanca um valor ímpar para o estudo da literacia e da transmissão do conhecimento na antiguidade.

Ainda que não se coadune exatamente com nenhuma das escritas já conhecidas através de outras inscrições, a sua filiação ao grupo meridional é inegável, tendo surgido na zona nuclear da escrita tartéssica ou do sudoeste peninsular. É de sublinhar a notável particularidade de os primeiros 13 signos conservarem a ordem relativa correspondente ao alfabeto fenício. Quanto à sua génese, o consenso académico ainda não foi alcançado: para alguns investigadores, a sua origem está direta e unicamente ligada ao alfabeto fenício, enquanto outros sustentam que a sua criação poderá ter sido influenciada também pelo alfabeto grego. Este debate sublinha a complexidade das interações culturais e dos processos de difusão de sistemas de escrita na Península Ibérica antiga.

O Legado das Lucernas e o Futuro da Memória

As lucernas do Museu de Castro Verde, na sua aparente simplicidade, contam-nos uma história complexa e multifacetada. Revelam as rotas comerciais que ligavam esta região a outras paragens do império, como o Algarve e a Bética, mas também a centros de produção mais distantes. A análise científica dos combustíveis utilizados – cera de abelha, resina de pinheiro, óleo de sementes de brassicáceas – acrescenta camadas de conhecimento sobre as práticas e recursos da época.

A presença de impressões digitais dos oleiros no interior das lucernas é um pormenor comovente, que nos liga diretamente aos artífices que moldaram o barro há tantos séculos. Uma base de dados que pudesse cruzar estas impressões com centros de produção conhecidos seria um avanço notável na compreensão das redes de artesãos e do comércio na Antiguidade.

O Museu da Lucerna, em Castro Verde, é mais do que um espaço expositivo, que retrata a civilização do avanço do Império romano; é um guardião da memória, um centro de irradiação de conhecimento e um convite à reflexão sobre a nossa própria relação com o passado. Num tempo em que a vertigem do presente nos afasta das nossas raízes, as lucernas de Castro Verde lembram-nos a importância de preservar, estudar e divulgar os vestígios que nos ligam àqueles que nos precederam. A luz romana que outrora iluminou os espaços sagrados ou domésticos da Antiguidade continua a brilhar, agora sob a forma de conhecimento e admiração neste museu da Lucerna. A luz da lucerna, frágil e antiga, é um farol no nosso presente, lembrando-nos da perene busca humana por iluminação, em todos os sentidos da palavra.

Notas adicionais: As fotografias foram retiradas do artigo da National Geographic sobre o Museu da Lucerna (Ver e ler aqui)

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top