Nossa Senhora de Aracelis (Castro Verde) (***)- O Altar Suspenso na Peneplanície Alentejana

Ermida de Nossa Senhora de Aracelis, está situada numa elevação quartzítica no Alentejo, num local belíssimo realçando e  possivelmente remontando ao século XVI. A sua arquitetura simples contrasta com a sua importância religiosa e cultural, sendo um local de devoção mariana com tradições seculares, como a romaria anual ligada aos ciclos agrícolas. A ermida é vista como um ponto central numa rede de santuários marianos, ancorando a fé popular na vasta peneplanície alentejana e testemunhando a ligação entre o tempo geológico, humano e espiritual. A paisagem circundante, com a sua pseudo-estepe e avifauna característica, complementa a aura de santuário.

Linha Cronológica:

  • 358.9–372.2 milhões de anos: Formação geológica dos “montes” quartzíticos do Devónico Superior, antigas praias quartzosas que, após metamorfismo, deram origem às elevações onde se situa a Ermida de Aracelis.
  • Época Romana e Mourisca (hipotético): Possível utilização do local como ponto de vigia sobre a antiga via romana que ligava Myrtilis (Mértola) a Vipasca (Aljustrel), dada a sua localização estratégica e a possível origem do nome “Aracelis” (Ara Coelis – Altar dos Céus) com ecos de cultos ancestrais.
  • Finais do Século XVI: Construção da ermida na sua traça essencial, durante o período de fervor mariano tridentino. A Ordem de Santiago é a senhora destas paragens, podendo ter registado a ermida como sua, embora a autoria da construção seja desconhecida.
  • Século XVII: Época provável da elaboração do altar-mor e da colocação da imagem da Virgem venerada na ermida. A Ordem de Santiago de Espada, donatária do território, celebra e visita o local, indicando um aumento da sua importância devocional.
  • Atualmente: A Ermida de Nossa Senhora de Aracelis continua a ser um importante santuário mariano do Alentejo, um foco de fé vibrante. Realiza-se anualmente, no último fim de semana de agosto, uma procissão com a imagem da Virgem, num rito ancestral que pede bênção para as colheitas. O santuário é palco de comunhão entre as gentes de São Marcos da Ataboeira (Castro Verde) e Alcaria Ruiva (Mértola), refletindo a sua localização fronteiriça. A crença popular refere a existência de outras seis ermidas “irmãs” avistáveis de Aracelis, sublinhando a sua centralidade no imaginário religioso da região.

Num Alentejo vasto, onde a planície se desdobra até aos confins do olhar e o céu parece pesar sobre a terra com uma intensidade quase bíblica, erguem-se, aqui e ali, elevações que quebram a monotonia horizontal. São os “montes”, as modestas serranias quartzíticas do Devónico Superior (antigas praias quartzosas formadas entre 358.9–372.2 milhões de anos) que posteriormente sofrerem metamorfismo e como ossatura antiga da paisagem, resistem a erosão.

O relevo associado a presença de cristas quartzíticas tem orientação geral NO-SE, coincidente com a estruturação tectónica dominante. Dos três alinhamentos de elevações, a nossa capela de Aracelis, instala-se no alinhamento quartzítico mais a norte, que é constituído pelos pequenos cerros da Murteira (272m) até à serra de Alcaria Ruiva (a mais elevada do Baixo Alentejo, com 371m) e serra da Senhora de Arcelis (274m). Estas pequenas serras são um relevo de dureza, herdado do encaixe da rede fluvial na peneplanície alentejana que se plasmam na estepe cerealífera ou pseudo-estepe do baixo Alentejo.

E num desses pontos altos, fronteiriço entre as terras de Castro Verde e as de Mértola, alcandora-se um pequeno templo, alvo e singelo, mas carregado de uma ressonância que atravessa séculos: a Ermida de Nossa Senhora de Aracelis.

O nome, só por si, é um poema e um enigma. Aracelis, corruptela do latim Ara Coelis, o Altar dos Céus. Que profundas devoções, que ecos de cultos ancestrais ressoam nesta designação? Imagina-se este pódio telúrico, atalaia natural sobre a vastidão, a servir, quem sabe, em eras idas – romanas e talvez mouriscas – como ponto de vigia sobre a antiga via que ligava Myrtilis (Mértola) a Vipasca (Aljustrel), artéria vital de homens e metais da riquíssima Faixa Piritosa Ibérica.

A ermida que hoje vemos, na sua traça essencial, deverá remontar aos finais do século XVI, tempo de fervor mariano tridentino que semeou de templos as colinas e vales de Portugal. A Ordem de Santiago, senhora destas paragens, tê-la-á registado como sua. Mas na verdade não sabemos quem a construiu. O seu coração devocional, talvez pulsasse com mais força no século seguinte, e no XVII, passa a ser celebrada e visitada pela Ordem de Santiago de Espada, donatária deste território, e época provável do altar-mor e da imagem da Virgem que ali se venera, testemunhos de uma fé que se prolonga e se adorna, ainda que com a simplicidade que a terra impõe.

A arquitetura é a da pobreza despojada, funcional, caiada de um branco que refulge sob o sol inclemente. De Planta retangular, corpo anexo, torre sineira modesta. A entrada, um arco redondo, convida à penumbra da nave única, coberta por uma abóbada de canhão que parece ecoar a vastidão celeste lá fora. No interior, vislumbram-se restos de pinturas murais no arco fundeiro, parcialmente veladas pelo retábulo de talha popular, ornado de volutas ingénuas, como que saídas das mãos do povo que aqui busca amparo. Alguns ex-votos, testemunhos mudos de graças alcançadas, reforçam a aura de santuário vivo.

Mas Aracelis não é apenas o templo. É todo o conjunto, que se derrama pela encosta em escadas e patamares, culminando nos pórticos barroquizantes que dão acesso ao adro amplo, espaço de acolhimento e celebração. E há também o albergue, memória dos romeiros de outrora, da necessidade de pouso após longas caminhadas por estas estepes. Porque Aracelis, ao contrário de tantas ermidas rurais votadas ao silêncio e ao esquecimento, continua a ser um foco de fé vibrante e é por isto um dos grandes santuários marianos do Alentejo, farol espiritual na imensidão da planície.

A paisagem em redor é um mundo em si mesma. A pseudo-estepe cerealífera, domínio da abetarda e da sisão, aves esquivas que são a alma destas planuras. E no Inverno, a chegada dos grous (Grus grus), vindos do norte da Europa, aves elegantes, cinzentas, de pescoço altivo, que esgaravatam os restolhos dispersas na estepe. Símbolos de longevidade e felicidade noutras culturas, aqui são parte integrante do ciclo anual, da respiração lenta desta terra. Avistá-los daqui, deste “Altar dos Céus”, é um privilégio que nos liga com a natureza primordial.

E a fé, essa, também segue os ciclos da terra. No último fim de semana de agosto, acorrem os romeiros para uma procissão na qual uma imagem da Virgem é levada em redor do monte quando o estio longo prenuncia as primeiras chuvas e a esperança, é feito um rito ancestral que pede a bênção dos céus para as colheitas futuras.

É um momento de comunhão entre as gentes de São Marcos da Ataboeira (Castro Verde), a quem pertence a ermida, e as de Alcaria Ruiva (Mértola), em cujo termo se espraia o adro. Uma partilha de fé e de festa que espelha a própria localização fronteiriça do santuário.

Diz a lenda, ou a sabedoria popular que se condensa em lenda, que de Aracelis se avistam outras seis ermidas “irmãs”, sentinelas marianas dispersas pela paisagem do Alentejo e Algarve: Remédios em Alcaria, Cola em Ourique, Castelo em Aljustrel, Guadalupe em Serpa, Saúde em Castro Marim (ou Martim Longo, conforme a fonte), Piedade em Loulé. Verdade ou metáfora, esta crença sublinha a centralidade de Aracelis no imaginário religioso da região, um ponto donde se tece uma rede invisível de devoção que abarca montes e vales.

No mundo de hoje, tão veloz e tantas vezes desmemoriado, lugares como a Ermida de Nossa Senhora de Aracelis são mais do que monumentos ou pontos turísticos. São âncoras. Testemunham a resiliência da fé popular, a sua íntima ligação aos ritmos da terra e do trabalho agrícola. Recordam-nos a sobreposição de tempos –o geológico, e o humano, remoto, medieval e moderno – num mesmo espaço. E oferecem, a quem sabe ver e sentir, uma lição de permanência e de esperança, tão necessária quanto o pão ou a água, nesta vasta planura alentejana que se abre sob o olhar vigilante do “Altar dos Céus”. A sua singeleza arquitetónica guarda uma força espiritual que o tempo não parece corroer, um sortilégio antigo que continua a convocar homens e mulheres em busca de consolo e sentido, sob a imensidão desta magnífica paisagem.

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